Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans

Breve Histórico
A Constituição Federal brasileira de 1988 prevê, como objetivo fundamental, a promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação. A Carta Magna, ainda, prega a saúde como um direito social de todos, determinando a prevalência dos Direitos Humanos. Para tanto, o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual também estabelece que toda pessoa tem capacidade para gozar direitos e liberdades, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, seja de cor, sexo e outras.
Não obstante, a Lei nº 8.080/1990 (que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes) institui os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), dos quais se destacam o direito à universalidade de acesso aos serviços, a integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
A fim de garantir a efetividade dos princípios do SUS, as diretrizes nacionais para a realização do Processo Transexualizador foram regulamentadas pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria nº 457/2 008. Essa portaria define como Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador a unidade hospitalar que oferece assistência diagnóstica e terapêutica especializada aos indivíduos com indicação para a realização do processo transexualizador, além de considerar que o acompanhamento terapêutico possui as dimensões psíquica, social e médico – biológica, contemplando, portanto, a(o) psicóloga(o) como membro da equipe multidisciplinar.
Nos anos de 2011 e 2012, no Relatório do Ano Temático de Avaliação Psicológica do Sistema Conselhos de Psicologia, houve a seguinte recomendação: Que o Sistema Conselhos recomende um Grupo de Trabalho (GT) na Assembleia das Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf), para discutir a elaboração de Resolução que normatize a atuação das(os) psicólogas(os) no atendimento a transexuais e transgêneros, especialmente no que se refere à avaliação do processo psicológico transexualizador no SUS.
Ressaltamos que a importância da Psicologia no processo transexualizador também é reconhecida e motivada, pelo Conselho Federal de Medicina, mediante as Resoluções 1.482 de 1997 e 1.955 de 2010, as quais dispõe que a(o) psicóloga(o) deve ser membro da equipe multidisciplinar necessária ao acompanhamento das pessoas transexuais que busquem os serviços de referência.
Considerações
Diante do exposto, o Conselho Federal de Psicologia CONSIDERA que:
– A Psicologia tem o desafio de garantir à população trans o respeito à dignidade e o acesso aos serviços públicos de saúde.
– A transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual.
– Na Portaria MS nº 1.707/2008, a psicoterapia é requerida, consistindo no acompanhamento do usuário no processo de elaboração de sua condição de sofrimento pessoal e social, antes e após a tomada de decisão da cirurgia de transgenitalização e demais alterações somáticas. O processo psicoterapêutico não se restringe, portanto, à tomada de decisão sobre cirurgias de transgenitalização e demais maneiras de modificação corporal.
– É objetivo da assistência psicológica a promoção da qualidade de vida da pessoa por meio do acolhimento e do apoio, a partir da compreensão de que a transexualidade e outras vivências trans são algumas das múltiplas possibilidades de vivência da sexualidade humana.
– As(os) psicólogas(os) devem considerar as inúmeras variáveis presentes no discurso de pessoas que pleiteiam a cirurgia transexualizadora. As pessoas trans têm autonomia e podem buscar apoio e acompanhamento psicológico na rede de saúde pública e privada, não só em centros de referência específicos, de modo que a psicoterapia deve ser fundamental para a tomada de decisão na realização do processo trans.
Orientações:
Posto isso, o Conselho Federal de Psicologia ORIENTA que:
– A(o) psicóloga(o) considerará e respeitará a diversidade subjetiva da pessoa que livremente optar pelo processo transexualizador, garantindo o direito constitucional à saúde, ao atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, conforme assegura a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, e o Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o).
– O trabalho da(o) psicóloga(o) deve se pautar na integralidade do atendimento psicológico e na humanização da atenção, não estando condicionado, restrito ou centralizado no procedimento cirúrgico de transgenitalização e demais intervenções somáticas, aparentes ou não, conforme determinação da Portaria MS nº 1.707/2008.
– A assistência psicológica não deve se orientar por um modelo patologizado ou corretivo da transexualidade e de outras vivências trans, mas atua r como ferramenta de apoio ao sujeito, de modo a ajudá – lo a certificar – se da autenticidade de sua demanda, englobando todo o seu contexto social.
– É objetivo da assistência psicológica a promoção da autonomia da pessoa, a partir de informações sobre a diversidade de gênero e esclarecimentos sobre os benefícios e riscos dos procedimentos de modificação corporal e social. O sujeito deve ter clareza de que a atenção é singular e flexível e que o projeto terapêutico pode ser modificado de acordo com as necessidades de cada um.
– A(o) psicóloga(o) deverá valer – se de pesquisas e estudos culturais na área de gênero e sexualidade na tentativa de buscar um respaldo teórico para entendimento desse contexto social para superação da heteronormatividade.
– O acompanhamento psicológico, requerido pelo Ministério da Saúde, deve basear-se no acolhimento, e/ou na escuta e/ou na avaliação psicológica, quando necessário, ao longo de todo o processo transexualizador.
– No processo de avaliação psicológica, aspectos não correlatos a vivência trans e/ou ao processo transexualizador, como traumas, transtornos alimentares, dismórficos corporais e quaisquer características de desordens psíquicas precisam ser devidamente consideradas com a finalidade de promoção da saúde do sujeito.
– O termo de consentimento informado deve ser um instrumento de esclarecimento ao usuário, no serviço público ou privado. A assinatura do termo pelo usuário não exime o profissional ou o serviço de responsabilidade em relação a sua prática.
Referências
GUÍA DE BUENAS PRÁCTICAS PARA LA ATENCIÓN SANITARIA A PERSONAS TRANS EN EL MARCO DEL SISTEMA NACIONAL DE SALUD. Editada por la Red por la Despatologización de las Identidades Trans del Estado español. 2012. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil . Brasília, DF: Senado Federal. 1988. 

BRASIL. Lei nº 8.080 , de 19 de setembro de 1990. BRASIL, Ministério da Saúde. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Portaria. N° 675/GM/ 2006. 31 de março de 2006. 

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.955/2010. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.652/02. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 3 set 2010a. Seção 1, p.80 – 1.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.482/97. Disponível em:http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1482_1997.htm . Acesso em: 10 de agosto de 2010. 

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 1/1999 , de 22 de março de 1999. 

MINISTÉRIO DA SAÚDE . Portaria MS nº 457 , de 19 de agosto de 2008. 

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria MS nº 1.707 , de 18 de agosto de 2008. 

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual Operacional para Comitês de Ética em Pesquisa . Brasília, 2008.