Documento de Orientação CRP SP n. 01/2016 – Frente ao atendimento de mulheres em situação de interrupção de gravidez

05/09/2016

Esta orientação diz respeito ao trabalho da psicologia no atendimento de mulheres em situação de interrupção de gravidez. Assim, é importante o entendimento que a responsabilidade e decisão da realização da interrupção de uma gravidez diz respeito apenas à mulher atendida[i]. Esse entendimento faz parte dos direitos humanos sexuais e reprodutivos, e o aborto, nesse âmbito, integra os direitos humanos das mulheres[ii];

Considerando que, segundo dados do Ministério da Saúde, em parceria com organizações de mulheres, no Brasil ao menos um milhão de abortos induzidos acontecem anualmente, sendo que uma em cada cinco mulheres já realizou esta prática[iii]. De acordo com a Organização das Nações Unidas, ao menos 65 mil mulheres morreram no Brasil em 2013 por complicações no parto, durante ou após a gestação ou em decorrência de abortos inseguros. Dentre tais mortes, mulheres pobres e negras são as principais vítimas. Os abortos são a quinta maior causa de mortes maternas no país, o que configura importante questão de saúde pública e aponta para a necessidade de cuidado e assistência a essas mulheres[iv];

Considerando que, o Estado brasileiro como signatário de diversos Tratados Internacionais, tais como a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD)[v], conhecida como Conferência do Cairo de 1994[vi], a Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM)[vii]e a Plataforma de Ação de Beijing[viii], se comprometeu a garantir o acesso das mulheres brasileiras aos direitos reprodutivos e direitos sexuais, referendando a autonomia destas frentes aos seus corpos. Um contexto que afirma, assim, que a decisão de ter filhos compete a quem vai gestá-los e criá-los, e não ao Estado ou à sociedade;

Considerando que estudos nos últimos 30 anos apontam que o aborto não afeta desfavoravelmente a maioria das mulheres[ix], onde é notada uma reação de alívio por parte delas[x], sendo o procedimento assimilado entre seis meses e um ano após sua realização. Ainda, as respostas psicológicas ao aborto são menos graves do que aquelas experimentadas por mulheres que levam sua gestação indesejada a termo e decidem entregar a criança para adoção[xi];

Considerando que, conforme estabelece a lei 5766 de 1971[xii], é função primordial do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo orientar à categoria quanto aos aspectos éticos pertinentes à atuação de psicólogas/os, visando o exercício profissional com qualidade ético-técnica;

Considerando os VII[xiii] e VIII[xiv] Congressos Nacionais de Psicologia, ocorridos respectivamente em 2010 e 2013, posicionaram-se favoráveis à descriminalização e legalização do aborto no Brasil, por entender necessário o direito de escolha das mulheres, sendo apenas sua a responsabilidade pela decisão de realizar ou não um aborto, e que este é direito humano das mulheres. E que ainda, deliberou-se pela necessidade de atendimento humanizado, digno, promotor de autonomia e cidadania, livre de preconceitos e julgamentos morais às mulheres que optarem pela interrupção da gravidez;

Considerando que em 2012[xv] o Conselho Federal de Psicologia posicionou-se favorável à descriminalização do aborto, apontando para a autonomia da mulher frente a esta decisão, reafirmada em 2014[xvi];

Considerando que a prática psicológica deve estar sempre orientada pelos fundamentos científicos e princípios éticos da profissão, visando à promoção de Direitos Humanos e a melhoria da qualidade de vida das pessoas. E que desta forma, as/os psicólogas/os não devem deixar que convicções de ordem pessoal interfiram no exercício profissional. Segundo o Código de Ética Profissional do Psicólogo:

Princípios Fundamentais

I.    O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
II.   O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Das responsabilidades

Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:

a.  Praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão;
b.  Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais.

O Conselho Regional de Psicologia da 6.ª Região ORIENTA:

No atendimento a mulheres que desejam interromper a gravidez, é dever da/o psicóloga/o, atuando em diferentes contextos, independente se a gravidez é decorrente de estupro, se há risco de morte para a mulher ou se há diagnóstico de feto anencefálico – únicas situações em que a interrupção da gestação não é punida pelo Código Penal brasileiro:

1- Oferecer atendimento humanizado e qualificado, destituído de preconceitos, juízo de valores e crenças religiosas, morais e pessoais, sem influenciar, direta ou indiretamente, na decisão de cada uma dessas mulheres. Não é papel da/o psicóloga/o induzir mulheres a interromperem ou não a gestação a partir de suas convicções pessoais, mas sim acompanhá-las em seu processo decisório, acolhendo suas dúvidas, questões, expectativas e receios, refletindo conjuntamente com ela, em busca de uma decisão clara e sem obstáculos, enfatizando que, qualquer que seja a conclusão que cada mulher alcance, essa decisão será definitiva e poderá influenciar sua vida de maneira integral.

2- O processo decisório deverá considerar o contexto sociocultural da mulher atendida, sua rede de relações familiares, comunitárias, institucionais e sociais, seus valores e crenças culturais, filosóficas, morais e religiosas, interferências e pressões de outrem, bem como quaisquer outras variáveis na produção do desejo em interromper a gestação. Esses elementos são fundamentais para a construção de uma decisão consciente, singular e personalíssima, isto é, deve ser unicamente tomada pela mulher usuária do serviço psicológico.

3- Avaliar de modo crítico e com a participação da usuária do serviço psicológico aquilo que motiva sua vontade de interromper a gravidez, problematizando suas expectativas futuras, valores e crenças, além de seus relacionamentos interpessoais e seu momento de vida. Tal atuação deve ser lastreada pela construção de relações horizontais entre usuária e psicóloga/o, busca de autonomia e protagonismo da usuária e apropriação crítica de suas experiências e relações com seu contexto de vida.

4- Ter como ponto de partida, em situações de gravidez decorrente de estupro, que essa gestação é mais uma das consequências de uma violência sofrida pela mulher, comumente marcada por sentimentos de vergonha, culpa e medo. Nessa situação cabe à/ao psicóloga/o ponderar, refletir e avaliar possibilidades existentes, tais como manter a gravidez e construir a sua maternidade, manter a gravidez e proceder com os procedimentos para adoção ou interromper a gravidez, conforme previsto em lei. Nessas circunstâncias cabe à e ao profissional oferecer acompanhamento psicológico humanizado, qualquer que seja a decisão final da mulher.

5- Garantir o atendimento às mulheres que desejam interromper a gravidez, desvinculado da obrigatoriedade de apresentação de boletim de ocorrência policial ou à comprovação dos fatos narrados, conforme preconiza a Norma Técnica do Ministério da Saúde Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes[xvii].

6- Avaliar com a participação da mulher atendida a necessidade de intervenção junto à família, comunidade e espaços de pertencimento, visando garantir sua autonomia no processo decisório. Nesse sentido, o serviço psicológico prestado deve ter por perspectiva a superação de relações cujos padrões são violentos e abusivos e a constituição e fortalecimento de vínculos protetivos e de cuidados.

7- Declarar objeção de consciência quando, por qualquer motivo e/ou convicção pessoal, sinta-se impedida/o para trabalhar com casos de interrupção de gravidez, a fim de que a mulher não seja prejudicada em sua tomada de decisão. Em tais situações, cabe à/ao psicóloga/o garantir o devido encaminhamento e assistência à mulher atendida em seu processo decisório e em possíveis acompanhamentos posteriores.

8- Garantir o sigilo profissional, de acordo com o previsto no Código de Ética Profissional do Psicólogo, não podendo, dessa forma, comunicar à autoridade policial ou judicial, nem à família da mulher atendida sem seu expresso consentimento ou por justa causa – ato excepcional, necessariamente fundamentado em razões legítimas e que respondam a interesses coletivos e da própria usuária do serviço psicológico.

Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região
XIV Plenário – 2013/2016


[i]Drezett J & Pedroso D. Aborto e Violência Sexual. Ciência & Cultura. 2012;64(02):35-38.
Pedroso D. Aborto e Violência Sexual. Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência;2012.64(2):35-38.
Pedroso D, Gomes EC, Drezett J, Adesse L, Silveira L, Mello MEV. História de Mulheres em Situação de Violência e Aborto Previsto em Lei. IPAS Brasil; 2008. Disponível em: http://www.ipas.org.br/arquivos/Biografia2008.pdf

[ii]Drezett J, Del Pozo E. El rol de los servicios de salud en la atención a mujeres víctimas de violencia sexual. La Paz: Ipas Bolivia; 2002. 15p.
United Nations. Report of the Fourth World Conference on Women, Beijing. New York: United Nations; 1995.
United Nations. Report of the International Conference on Population and Development, Cairo. New York: United Nations; 1994.

[iii]Pedroso D. Aborto e Violência Sexual. Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência;2012.64(2):35-38.

[iv]http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/03/Informe_Brasil_Beijing_20.pdf

[v]http://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/UNFPA_2015_Annual_Report.pdf

[vi]http://unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf

[vii]http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/mulher/Declarac255eo%20de%20Pequim%20adotada%20pela%20Quarta%20Conferencia%20Mundial%20sobre%20as%20Mulheres.pdf

[viii]http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/pdf/BDPfA%20S.pdf

[ix]Sachdev P. Sex, Abortion and Unmarried Women;1993. Westport , CT: Greenwood Press

[x]Drezett J & Pedroso D. Aborto e Violência Sexual. Ciência & Cultura. 2012;64(02):35-38.
Kero A, Hogberg U, Lalos A. Wellbeing and mental growth: long-term effects of legal abortion. Social Science & Medicine; 2004. 58, 2229-69.
Miller DH. Medical and Psychological Consequences of Legal Abortion in the United States. Evaluating Women’s Health Messages: A Resource Book; 1996. Thousands Oaks, CA: 17-32.
Adler N, Henry D, Major B, Roth S, Russo N, Wyatt G. et al. Psychological responses after abortion.Science; 1990. 248 (4951), 41-4.
Lazarus A. Psychiatric Sequelae of Legalized First Trimester Abortion. Journal of Psychosomatic Obstetrics & Gynaecology; 1985. 4(3): 140-50.

[xi]http://infanciaejuventude.tjrj.jus.br/adocoes/cartilha/cartilha-adocao.pdf
Pedroso D. Aborto e Violência Sexual. Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência;2012.64(2):35-38.
Sachdev P. Sex, Abortion and Unmarried Women;1993. Westport , CT: Greenwood Press.

[xii]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5766.htm

[xiii]http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/12/Deliberacao_VII_CNP.pdf

[xiv]http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/08/MinutaCadernodelibera%C3%A7oes14.08.pdf

[xv]http://site.cfp.org.br/posicionamento-do-conselho-federal-de-psicologia-sobre-o-aborto/

[xvi]http://site.cfp.org.br/as-vesperas-do-dia-de-luta-pela-descriminalizacao-do-aborto-na-america-latina-e-caribe-realizado-em-28-de-setembro-o-conselho-federal-de-psicologia-no-uso-de-suas-atribuicoes-regimentais-de-orienta/

[xvii]http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf

 


Faça o download da versão em PDF: http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/pdf/nota-interrupcao-gravidez.pdf